terça-feira, 3 de dezembro de 2024
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Ser menina

Imagem do livro "I'm glad I'm a boy! I'm glad I'm a girl!" Do lado esquerdo: "Meninos têm caminhões." Do lado direito: "Meninas têm bonecas."
Imagem do livro “I’m glad I’m a boy! I’m glad I’m a girl!” Do
lado esquerdo: “Meninos têm caminhões.” Do lado direito:
“Meninas têm bonecas.”

Quando eu era criança, a distinção entre o macho e a fêmea da espécie era algo sem importância para a eu-infantil, que estava satisfeita em brincar com tanto meninas quanto com meninos, que não enxergava diferenças de sexo e que não via as coisas como “nós” e “eles.” Até a vida real mostrar sua faceta para mim, é claro, e a vida real costuma começar na escola.

Forçou-se aí a primeira separação: os meninos tinham o pátio deles, as meninas tinham o pátio delas. Meninas não podiam entrar no pátio dos meninos e vice-versa. Eu nunca soube o motivo, mas sabia que era errado e que haveria advertências se quebrássemos as regras. Mas eu tenho um irmão mais novo, e às vezes gostava de ir visitá-lo, e os monitores me lançavam um olhar esquisito: “o que essa menina está fazendo aqui?” As coisas conseguiam ser ainda piores quando meu irmão era bem pequeno e não lidava bem com separação, e costumava aparecer no pátio das meninas à beira das lágrimas, atrás de mim, seu único ponto de referência, apenas para ser feito alvo de piadas pelos colegas (porque o sexismo nunca machuca só um lado): “o que ele faz aí, com as meninas? Ele acha que é uma garotinha.” Garotinha sendo, naquela época e hoje, o a pior das ofensas que um homem pode receber: garotinha, menininha, florzinha, boneca.

As atividades extra-curriculares eram outra forma de se marcar a diferença: os meninos tinham futebol. As meninas tinham balé. Uma vez, quis porque quis jogar futebol, porque tinha acabado de ver um filme sobre um time juvenil e algo a respeito dele havia me enfeitiçado, mas apenas ouvi que “futebol não é para meninas. Meninas precisam fazer algo delicado.”

O fantasma do balé/futebol me seguiu até a adolescência. Cada novo colégio, mesmo depois de sair da escola de pátios separados, apresentava o mesmo padrão: atividades “femininas” para as meninas, atividades “masculinas” para os meninos. Quem quisesse algo diferente, teria de procurar fora dos portões da escola, porque entre eles as coisas eram bastante separadas, divididas em caixas.

As meninas da minha classe, de todas as classes em que já pisei, absorviam isso, porque é impossível ter um sistema inteiro marretando algo na sua cabeça e não absorver pelo menos um pouco. Elas queriam ser as princesas, as modelos, as bailarinas, as coisas que carimbamos como femininas. As garotas não eram incentivadas a comprometer-se com esportes pesados e nem se falava sobre profissões. Falava-se muito sobre namorados e casamento, sobre a prole que existiria no futuro (todas se imaginavam casadas mais ou menos aos 25 anos, idade que, para as crianças que éramos, parecia de uma maturidade absurda); falava-se pouco sobre independência e sobre alternativas.

Aquele foi o começo: o mundo mais obscuro das diferenças que são impostas aos gêneros, esse eu só descobriria mais tarde, adolescente, quando comecei a me deparar com o problema publicamente. A primeira vez: estava com 14 anos. Estava com uma amiga da mesma idade. O sujeito que nos ofereceu sua cantada tinha idade para ser meu avô. Ninguém fez nada a respeito, exceto eu, que o confrontei, e recebi uma risada como resposta. Adulto nenhum se manifestou, como ninguém se manifesta hoje em dia, quando acontece com outras meninas, com outras jovens. Já em Blumenau, flagrei grupos de homens adultos e vacinados murmurando coisas praticamente pornográficas para garotas de 16, 17 anos. A campanha “Chega de fiu-fiu” nasceu por isso; para dar voz as que são acuadas por esse tipo de comportamento.

À menina, desde cedo é ensinado que não há destino pior do que a perda da beleza, do corpo. Revistas inúmeras são vendidas com o intuito de nos mostrar como parar o tempo, como ser linda para sempre, magra, sem celulite, porque nada pode ser pior do que ser feia, porque nada é mais importante para nós do que nosso valor físico, a suposta feminilidade. Somos ensinadas que a atenção de um homem é o ápice da nossa existência: ser reparada, na rua ou em qualquer lugar; estar em um relacionamento, escapar de ser solteira, garantir um casamento. “Já está de namorado?” perguntam os parentes. Se você diz não, a resposta automática é: “Está na hora de arranjar um.” Se você diz que sim, outra resposta automática surgirá: “Para quando é o casório?” 2014 e ainda pensamos que o casamento e a maternidade só pode ser o objetivo final da mulher; e não culpo necessariamente as tias e avós, que foram, afinal, criadas em tempos ainda mais machistas do que os nossos, mas culpo a sociedade que persiste com os mesmo valores, às vezes disfarçados, às vezes com roupagem novas. Ainda querem mulheres “femininas,” ainda querem princesas, ainda querem que esperemos ser salvas.

Por isso revistas como a Capitolina são ótimas para adolescentes. Por isso campanhas como a do Girls Rock Camp são tão fantásticas. Possibilidades. Há algo além para meninas do que uma escola de princesas, e só sinto por coisas assim não existirem quando eu era menor.

Em 1998, pedi para meus pais um Nintendo 64, pelo qual estava obcecada. Ganhei-o no Natal, mas muita gente achou esquisito. “O que uma menina quer com o vídeo-game?” Era para eu estar ganhando Barbies, roupas de bonecas, joias, bichinhos de pelúcia, eu de fato ganhei muito disso naquele ano, mas o que eu queria mesmo era meu N64. “O que uma menina quer com um vídeo-game?”

Ela quer jogar. O que um menino quer com um vídeo-game? O que um menino quer com uma bola de futebol? Alguém faz essas perguntas?

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