“Nunca o destino de tantos homens esteve nas mãos de tão poucos homens”, declara Churchill durante a Segunda Guerra Mundial, referindo-se aos aviadores que salvariam a Inglaterra. O que poderia ser aplicado aos poucos dirigentes que, já no pré guerra, e nos anos subsequentes, tiveram o destino do mundo em suas mãos, tais como Churchill, Stálin, Roosevelt e De Gaulle. O que bem dá uma medida da crucial importância daquilo que os indivíduos sabiam, das informações de que dispunham para tomar suas decisões, da percepção que tinham das intenções de Adolf Hitler.
Não é indiferente constatar, assim, que todos que leram ou percorreram Mein Kampf o levaram a sério. Ao contrário do grande público, eles tinham edições não expurgadas, valendo-se dos serviços de administração e de tradutores, exatamente como todos os dirigentes políticos, militares ou diplomáticos da época.
Stalin muito cedo tem o livro em suas mãos, nele percebendo a vontade de ferro do Führer. E o tirano soviético não teve grandes dúvidas quantos às intenções de Hitler e em conseqüência tratou de se aproximar das democracias ocidentais. E tratou em seguida de armar essa manobra genial e terrível: o pacto Germano – Soviético, para se livrar da pressão nazista…
O presidente Roosevelt, convencido do perigo nazi, muito antes da maioria de seus concidadãos e decidido a engajar a América na guerra contra o Reich, igualmente o leu. Seu exemplar pessoal, devidamente anotado é hoje conservado no museu da Segunda Guerra Mundial em Boston.
Como se sabe, De Gaulle também leu o livro, já no meado da década de 1930. O resistente Michel Marcq, observa em suas memórias que, dez dias depois da convocação de 18 de junho de 1940, em que De Gaulle convocou pela BBC os franceses a resistirem, o general o recebeu com estas palavras: “O senhor leu Mein kampf ? Por não conseguir alcançar Londres, Hitler vai-se voltar contra Moscou”. Da mesma forma, Maurice Schumann, grande resistente, relata uma conversa com o líder da França livre: “Quando cheguei a Londres a primeira coisa que De Gaulle me perguntou foi: O senhor leu Mein Kampf?. E eu respondi: “Não, meu general”- Pois bem, deve ler, e ficará sabendo o que é a Alemanha nacional-socialista”.
Outro personagem, de papel não desprezível, tanto pelo que fez, tanto pelo que não fez, tem consciência do alcance dessa nova bíblia. Trata-se de Eugênio Pacelli. O futuro papa Pio XII, germanófono, é núncio na Alemanha, quando lê Mein Kampf em 1934. Fica horrorizado, mas convence o Papa Pio XI a não incluir a obra de Hitler no índex: a questão é não se opor frontalmente ao Führer, evitando assim atiçar a política anti-católica do Reich. Em nome desse objetivo, o vaticano mostra-se bastante cauteloso em sua denúncia do nazismo e de sua política anti-judaica, eximindo-se de condenar a bíblia do III Reich com um ato tão forte como a inclusão no índex. Não podemos deixar de pensar que com esta omissão, isto poderia ter alertado e causado algum impacto nos milhões de católicos alemães.
David Ben Gurion, artífice da criação do ESTADO DE ISRAEL, lê o livro já em 1934 e chega a esta conclusão: “a política de Hitler põe em risco todo o povo judeu”. Com isto, sua vontade de estabelecer uma pátria nacional judaica vem a ser reforçada pelo perigo nazi.
Mas há ainda um homem que, mais que qualquer outro, teria o destino do mundo em suas mãos, encarnando a resistência ao nazismo: Winston Churchill. Enquanto os outros dirigentes faziam uma leitura estratégica e militar de Mein Kampf, ele é o único a ter compreendido todo o seu alcance profundo, o único a perceber que ali estavam contidos todos os impulsos da personalidade de Hitler e suas intenções.
TUDO ESTAVA LÁ
Quando Hitler chega à chancelaria, Winston Churchill, ex-ministro está afastado do poder e já não passa de simples deputado, que vive a maior parte do tempo em sua bela residência em Chartwell. Conservador, anti-conformista, ele poderia, como alguns de seus compatriotas, sentir-se em dado momento seduzido pelo arauto da “Nova Alemanha”. Mas não é o caso. Como relato seu biógrafo François Kersaudy, ele leu alguns extratos de Mein Kampf já em 1925. E sabe desde então com quem está lidando. Em 1932 aproximando-se o Partido Nacional-Socialista do poder, ele dedica a maior atenção a travar conhecimento com a obra.
Na época são poucos os políticos para os quais significa tanto a leitura de Mein Kampf. Em suas memórias da Segunda Guerra Mundial, Churchill observa: “tendo Hitler chegado ao poder, poucos livros mereciam tanto ser estudados atentamente pelos dirigentes, os políticos e os militares das potências aliadas. Tudo estava lá”.
Churchill também descreve o efeito que a leitura teve sobre ele, o sentimento de ter nas mãos “o novo Corão do fanatismo e da guerra, enfático, palavroso, informe, mas com uma mensagem forte”.
Ao contrário de um De Gaulle, que enxerga ali principalmente a expressão do pan-germanismo, Churchill entende perfeitamente a natureza do novo totalitarismo hitlerista, suas obsessões raciais, sua concepção do mundo, seu desprezo pelo indivíduo, seu gosto pela força bruta, seu desejo de eliminar os judeus, os quais, em virtude de seu universalismo, seriam necessariamente pacifistas e internacionalistas. Acontece que para Hitler, observa Churchill, “o pacifismo é o pecado mais mortal, pois significa a derrota da raça na luta pela vida. A tese principal de Mein Kampf é simples, afirma o inglês, “o homem é um animal de combate, e em conseqüência a nação não passa de uma comunidade de combatentes. Um pais ou uma raça que deixam de combater ficam ameaçados de extinção. Só a violência bruta pode garantir a sobrevivência da raça”.
Em particular, ele se dá conta do antissemitismo fundamental de Hitler, o que , mais uma vez, o distingue de seus contemporâneos. Análise tanto mais importante na medida em que é precisamente a negação dos direitos humanos preconizada pelos nazistas que revolta Churchill acima de tudo, convencendo-o de que Hitler não é um indivíduo freqüentável. Como outros compatriotas, Churchill poderia considerar que seria conveniente aplacar Hitler, sendo possível negocias com ele, já que seus objetivos , são essencialmente continentais, não pondo fundamentalmente em risco os interesses vitais do reino Unido. Hitler por sua vez, sustenta na década de 1930, um discurso tentando seduzir os ingleses. E uma legião se deixou seduzir.
O ex-primeiro-ministro Lloyd George, por exemplo, vê em Hitler um “grande homem”. O embaixador inglês na Alemanha, de sua parte qualifica o III Reich de “ditadura benevolente”. Quanto a Chamberlain, o primeiro-ministro do momento, partidário e artesão da política de apaziguamento em relação à Alemanha, mostra-se efetivamente conquistado pela personalidade do Führer. Churchill não se limita a estudar Mein Kampf, que considera um pilar de granito da política hitlerista. O deputado conta com correspondentes e informantes no interior do estado britânico, como em todo o mundo. Em 1932, faz, assim, uma viagem à Alemanha, chegando a conclusão de que a ascensão do nazismo a que assiste “não deixará de fazer tremer nas bases – e mesmo de aniquilar – os países de que falei e mesmo alguns outros países de que não falei”. Tem consciência, igualmente, de que os franceses “devem assistir com a maior preocupação o que atualmente acontece na Alemanha”. Churchill entra em campanha, assim, pelo rearmamento de uma Inglaterra que, como a França, se desarmou e que acima de tudo a paz.
ESTEIO DA POLÍTICA
Churchill não está totalmente isolado. Outro inglês considera Mein Kampf com a maior atenção: a 26 de abril de 1933 – três meses depois de ser Hitler nomeado chanceler – o embaixador britânico na Alemanha, Horace Rumbold, que há anos vem acompanhando a ascensão de Hitler, envia um despacho especial ao primeiro-ministro. Adverte o governo de levar o livro muito a sério e considera que Hitler recorrerá a declarações pacíficas intermitentes “para criar uma sensação de segurança no exterior”. Rumbold escreve também que o novo chanceler “não vai abrir mão dos pontos cardeais de seu programa”, mas tentaria “empurrar os adversários a um tal estado de coma que eles se deixariam enganar um a um.” O embaixador afirma que Hitler promove “uma política muito bem amadurecida, cujo objetivo era preparar a Alemanha militarmente antes que seus adversários possam intervir”. Adverte ainda que Hitler acredita pessoalmente em seu antissemitismo violento e que é este o esteio de sua política governamental.
Diante dos acontecimentos, Churchill é tomado pela dúvida: “ainda não sabemos se Hitler será aquele que conduzirá o mundo a uma nova guerra, que destruirá a civilização, ou se a história registrará ter sido ele aquele que entregou sua honra e seu espírito de paz à grande nação alemã e se não haverá de reintegrar a família européia como um parceiro de boa vontade”, escreve ele em Grandes homens do meu tempo, ensaio que publicou em 1937. Ao examinar de perto a atitude do alemão, contudo ele vê confirmada a primeira hipótese. Dá-se conta de que Hitler, ao contrário de uma idéia mais ou menos generalizada, não age conforme o momento, preferindo movimentar metodicamente os peões, e que jamais voltará a integrar a comunidade das nações, seguindo na verdade um plano.
Em março de 1938, quando a Alemanha anexa a Áustria, Churchill registra em seu diário: “A agressão ocorreu. Hitler seguindo exatamente o processo exposto em Mein Kampf, rompeu os laços de boa vontade que o ligavam aos estadistas ingleses e franceses, que tanto haviam se esforçado por acreditar em sua palavra”.
Fontes Consultadas:
Mein Kampf: A história do livro. Antoine Vitkine. Editora Nova Fronteira – 2010.
ALMAQUE EU SEI DE TUDO – Edição 23 – Agosto de 1939. Cia Editora Americana.