quarta-feira, 24 de abril de 2024
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Pandemia de Incompetência na TV

Quando ouvia alguma queixa quanto a dificuldade em achar algo para ver na TV, não entendia, afinal, diante de novas opções decorrentes do abrochar dos streaming, o hábito de mudar de canal até se entediar de vez parecia ter ficado para trás. Eu estava enganado. Forçado por estar socado em casa em decorrência da quarentena, a necessidade de preencher o tempo livre foi encontrar refúgio no controle remoto. Nos noticiários matinais, o cartão de visita estava dado – mortes, mortes ao quadrado, mortes ao cubo. Já ciente que a segunda opção são as desprezíveis novelas e o futebol andava paralisado, corri para o Netflix. Estar em casa para encarar o que essas plataformas ofereciam me fez compreender as reclamações de quem não conseguia se entreter diante da tela, mas também me fez procurar motivos para esse decadance cultural em cores.

Ao acessar o menu, o telespectador é bombardeado por uma lista de seriados decepcionantes, possivelmente, muito estimulados pelo apelo ao público jovem, pois não haveria outra explicação para determinadas obras figurarem como sugestões. A baixa qualidade das opções oferecidas no acervo só faz jus na imensa demanda por películas destinadas ao nicho adolescente e de jovens adultos, nicho este, mais sedento pelo número de alternativas do que pela qualidade das mesmas. Esse claro direcionamento é apontado pela Nielsen, empresa especializada em marketing digital. O drama adolescente 13 Reasons Why, por exemplo, em sua segunda temporada, teve 75% do público abaixo de 34 anos no primeiro final de semana de estreia. Dessa parcela, 65% era composto pelo público feminino.

Um dos serviços que apontou seus holofotes para esse setor etário e de gênero citado na pesquisa foi a Netflix. A gigante do streaming incorporou em seu catálogo inúmeros produtos do canal americano ABC. Se um dia a ABC teve alguma dignidade, esses dias se encerraram ao término do capítulo final de Lost. Daí para frente, tem se tornado desagradável para um público mais exigente por histórias ajuizadas, realistas, cruas e consistentes. Não espere isso da avalanche boboca construída em Quantico. Direcionada ao público juvenil, o roteiro vende a ideia de que uma temporada de treinamento na sede do FBI exige tanto rigor e disciplina como um cruzeiro universitário. Os protagonistas parecem mais preocupados em arrumar um par romântico do que em tornarem-se agentes especiais. Ao término da temporada, ver um sexteto de patetas desmascarando um terrorista exige grande suspensão de ceticismo.

Controle remoto e televisão - foto de Valter Campanato - EBC)
Controle remoto e televisão – foto de Valter Campanato – EBC)

Adicionalmente, os seriados possuem uma maior concorrência, considerando que dividem espaço na agenda de tarefas inúteis com aplicativos de chat e o próprio Youtube. É essa concorrência que é flagrada pela Statista, especialista em dados de consumidores, num recorte do período de 2011 a 2020, aonde, ficou claro que o tempo médio em minutos em redes sociais ultrapassou o tempo médio em minutos na frente do televisor em 2019 nos EUA. A esta altura do campeonato, nos lares americanos, usa-se 451 minutos do seu dia nas mídias sociais e somente 363 minutos assistindo TV. Sem um script técnico e que instigue a atenção do espectador por si só, algumas tramas apostam em romances paralelos toscos e até jogadas de marketing para se perpetuarem e manterem os olhos do espectador na tela de 40 polegadas e, consequentemente, tornar seu produto atrativo aos patrocinadores.

Não à toa, um aglomerado de lugares comuns como La Casa de Papel passou da primeira temporada. Truques manjados, retirados do mais básico filme de assalto, tornam os episódios previsíveis, para não dizer sonolentos. Talvez o disfarce usado pelos protagonistas seja um duplo truque: esconde o rosto dos bandidos como também mascara as atuações de baixo nível dos atores. E lá se vão três ou quatro temporadas da série espanhola. Não adiantaria colocar uma máscara no rosto dos atores na maior parte das atrações. A insatisfação por participar de algumas obras é difícil de disfarçar. Séries americanas chegam a trabalhar em uma margem de 22 episódios por temporada, prolongando o sofrimento da audiência, produção, atores e os demais envolvidos em mais um desagrado televisivo que irá compor a grade. A atenção (e a carteira) dos anunciantes são o mote para a execução desses folhetins insossos.

Em outro levantamento da Nielsen, após coleta de dados anual, detectou-se que 25% do público fica a par das novidades da televisão através das redes sociais (mpact of Social Media on TV Viewing – Nielsen State of Social Media Report). Esse avanço das redes permitiu a democratização da opinião entre outras vantagens, no entanto, quando se materializa na forma de tribunais da internet, a possibilidade de influenciar negativamente o que está em andamento se confirma. Com essa fatia de um quarto do público possuindo voz ativa na web, é inevitável que influenciem negativamente o transcorrer das produções. Roteiros sujeitos aos humores da plateia, acabam levando a incongruências, erros de continuidade, excesso de importância a personagens secundários, tornando uma trama com potencial em uma correnteza escroque de eventos.

Oriundo da pobre oferta de bons seriados, indubitavelmente, surge uma reserva de mercado para títulos de alto orçamento, com poucos episódios e mais fiel a uma trama sólida ao invés de tentar se moldar aos sabores da audiência ou até mesmo a temáticas contemporâneas que pouco contribuem, tornando a série um Frankenstein que não sabe para onde ir, tentando agradar gregos e troianos. A adaptação de jogo The Witcher segue com austeridade o manual de uma trama virtuosa.

Como explanado, dentre as explicações quanto a queda de qualidade das obras, fica cristalino a necessidade em agradar a parcela jovem do público, cada vez mais sedenta por personagens que de alguma forma os representem [como se isso fosse possível], ainda que como consequência tenhamos roteiros pasteurizados, tramas centrais fracas e conclusões ambígua. Ávidos pela audiência dos jovens, estes com tempo livre e possibilidades virtuais na palma da mão, as produtoras usam qualquer artificio para captar essa fatia do público e, assim, conseguirem a atenção dos anunciantes. Para piorar, a TV não somente concorre com as redes sociais, como, hoje, é influenciada pelo que veem dela. Me pergunto se estou testemunhando o fechar de cortinas da telinha.

Por fim, apesar do confinamento forçado me leve a ter a TV como primeiro refúgio, considerando o que se vê através da tela, entendo que devo procurar outro tipo de distração enquanto sou forçado a ficar em casa. Talvez jogar um baralho, jogo de estratégia em tabuleiro ou até um videogame. A torcida pelo fim da pandemia é mais forte e mais frutífera, afinal, não creio que seja gratificante esperar pela melhora das produções, convenhamos. E se você está aí na sua casa, assistindo a qualquer uma das séries aqui citadas ou similares, fique tranquilo. O vírus não vai querer ficar aí dentro.

Lucas Lôbo
Lucas Lôbo
Analista de Redes de Fortaleza (CE) autor de crônicas e artigos
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