sábado, 20 de abril de 2024
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Os cães

Os cães: ambos resgatados da rua. Um era inquieto e irascível, o outro era amável e extremamente carente. O primeiro havia sido abandonado quando bebê, com os irmãos e com a mãe, enquanto o segundo pertencia a um bruto que tratava-o de modo criminoso; chegou às nossas mãos quase morto pelos vermes que cresciam nele, infestado de pulgas, fraco e resignado a não ser querido pelo restante da vida. O segundo era o meu xodó. Eu adorava colocá-lo em cima da cama, onde ele rolava e fazia a festa, dormia e rolava mais um pouco, só para deixar meu edredon fedido e cheio de pelos (que depois eu limpava com aquele rolinho da Scotch Bright e constatava que “uau, tem pelo suficiente aqui para fazer um casaco novo”).

Foi assim que saí de casa durante meio ano: cheirando à cão e com pelos grudados pelas roupas. Mas eu não me importava. Sensação nenhuma se compara ao retorno, quando você abre a porta e dois cachorros pulam em cima de você, querendo te lamber e te recepcionar, aquela forma tão exagerada e calorosa de dizer “senti sua falta.” Nós, as pessoas que gostam de animais, inevitavelmente nos tornamos prisioneiras deles; que talvez não seja a palavra mais bonita para se descrever a relação homem-animal, mas que eu acho que exemplifica bem a situação. Não conseguimos mais deixá-los. Criamos uma dependência dessas criaturas, como elas criam em respeito a nós, embora elas não sejam capazes de falar conosco, de ler o que lemos, de entender o mundo como entendemos, embora elas nem mesmo sejam capazes de ver “Game of Thrones” com a gente (que tragédia).

Zurckeyes (Maria Clara)
Zurckeyes (Maria Clara)An

Eles não se entendiam; brigavam sempre que se encontravam, com mais energia do que uma criança que acabou de tomar Coca-Cola, pedalando seu triciclo a cem por hora. Era difícil separá-los. Recebi minha cota de mordidas do primeiro, e foi quando percebemos que não daria para sustentar a situação por muito tempo. Aquele que era o mais ardido da dupla sempre teve um lar oficial: a casa da namorada do meu irmão. O mais doce, no entanto, sabíamos que nunca seria nosso. Sua passagem pela nossa casa era o que era: uma passagem. Até que conseguíssemos um lar definitivo.

Foi difícil dizer adeus. Minha mãe chorou, não quis vê-lo partir. Eu engoli minhas lágrimas—porque estava com ele no colo, porque era meu dever entregá-lo aos novos donos, uma família muito simpática. Mas doeu. Penso nas pessoas que fazem disso suas vidas: resgatar animais, cuidar deles, amá-los e depois confiá-los a outros. Penso em como me destruiria a repetição, mesmo sabendo que eles também serão cuidados e amados em outra casa. Acho que meu coração não é forte o suficiente, então as pessoas que se dispõe a isso, as salvadoras, as donas de lares temporários, formais ou não, contam com minha eterna admiração (porque não é fácil).

Eu hoje sei que os dois estão felizes com seus donos. E sei que ambos continuam com seus momentos de baixar o capeta, a diferença sendo que agora eles parecem se dar bem com os outros cães com os quais compartilham a casa. Acho que simplesmente não foram feitos um para o outro; muitas histórias de amor terminam assim.

Mas a falta que sinto. E como sinto.

Acho curioso como algumas pessoas que passam por nossa vida não nos deixam nenhuma saudade, apenas passam e é isso. Enquanto a maioria dos animais de que cuidamos, quando se vão, deixam mais um pedacinho vazio em nós, algo que nunca preenchemos direito, que nos faz sentir aquela pontada melancólica, mas também alegre, quando pensamos neles.

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