quinta-feira, 28 de março de 2024
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O Serviço de Proteção aos Índios e a desintegração cultural dos Xokleng

Eduardo de Lima e Silva Hoerhann e índios Xokleng
Eduardo de Lima e Silva Hoerhann e índios Xokleng

A tese O Serviço de Proteção aos Índios e a desintegração cultural dos Xokleng (1927–1954) foi elaborada a partir da documentação que localizei na casa de meu tio-avô em São José (SC) no ano de 2001. Este parente pediu-me para receber os novos ocupantes da moradia, que havia sido alugada, pois ele se encontrava em Brasília. Quando lá cheguei, os novos residentes faziam uma faxina e colocavam algumas coisas para queimar na churrasqueira, o que por eles fosse considerado lixo. Entre essas coisas estava um amontoado de papeis velhos, úmido, que cheirava a podridão, devido aos ninhos de baratas e ratos. Eu estava com 24 anos e tinha acabado de me formar em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); pretendia fazer mestrado, mas não sabia em qual assunto. Quando finalmente tive uma das folhas em minhas mãos, percebi que se tratava de um documento acerca do processo de integração do indígena à sociedade regional, postulada pelo governo republicano no início do século XX. Eu não sabia praticamente nada sobre o tema, com a exceção das parcas informações fornecidas pela família e que meu bisavô Eduardo de Lima e Silva Hoerhann (1896-1976) havia sido funcionário do Serviço de Proteção aos Índios. Porém, imediatamente interrompi o “churrasco” para me apossar da papelada.

Confesso que até então eu nunca havia tido muito interesse pelo assunto, mas, com o achamento dessas centenas de folhas, vi uma oportunidade de trabalhar com fontes interessantes, em sua maioria inéditas, que poderiam proporcionar um bom projeto. Assim, entre 2003 e 2012 escrevi uma dissertação e uma tese, resumidas no parágrafo abaixo:

Do SPI, criado em 1910, nasceu a consciência de acautelamento dos indígenas com a intenção de transforma-los em trabalhadores autossuficientes sob a tutela temporária do Estado. Muitas sociedades indígenas entravam em choque com ocupantes dos seus territórios tradicionais e em Santa Catarina a situação se agravou a partir da chegada de imigrantes alemães na primeira metade do século XIX. Os Xokleng competiam com colonos pelo mesmo espaço e frequentemente travavam conflito físico. Em 1914, Eduardo Hoerhann — que contava com 17 anos — assumiu a liderança do Posto São João (no Alto Vale do Itajaí), cuja equipe deveria conseguir o encontro pacífico com os Xokleng, a fim de reuni-los em um território em comum e iniciar o processo de integração regional. O encontro foi conseguido em 22 de setembro de 1914, acarretando, com o passar dos anos, a assimilação cultural imposta pelo SPI e a perda de quesitos tradicionais como o nomadismo. Foi incrementado o peixe na dieta destes indígenas e, de caçadores e coletores, passaram a ser também agricultores. Eduardo Hoerhann foi funcionário do SPI de 1912 até 1954.

Parte dos escritos de meu bisavô sobreviveu duas enchentes nos anos 80 (em sua casa, no atual município de José Boiteux, SC) e escapou de ser incendiada pelos novos ocupantes da moradia. A documentação foi higienizada, classificada e trabalhada por mim ao longo de 10 anos, resultando na elaboração da dissertação de mestrado O Serviço de Proteção aos Índios e os Botocudo: a política indigenista através dos relatórios (1912-1926) e a tese de doutorado O Serviço de Proteção aos Índios e a desintegração cultural dos Xokleng (1927–1954), ambas em História pela Universidade Federal de Santa Catarina, sendo esta última defendida em dezembro de 2012. Nela eu apresento o diálogo, durante os anos de 1930, entre Eduardo Hoerhann e Curt Nimuendajú, que se corresponderam para debater aspectos culturais das sociedades indígenas brasileiras e, sobretudo, sobre os Xokleng — na época conhecidos como Botocudos. Também participou deste debate o antropólogo estadunidense Jules Henry, cuja tese resultou em sua obra mais célebre (Jungle People — Kaingang tribe of the highlands of Brazil), baseada nos aspectos socioculturais desta etnia, pelo que ele observou entre 1932 a 1934, no posto indígena pelo qual Eduardo foi responsável por 40 anos. Com inúmeras indagações e troca de conhecimentos entre as três personagens, pude constatar que meu bisavô, como funcionário federal, possuía a ordem de promover a integração dos Xokleng e extinguir traços culturais que prejudicassem este processo. Porém, devido ao contato com esses cientistas, Eduardo precisou enfrentar um dilema entre manter ou extirpar a identidade Xokleng, que o leitor poderá conferir no texto e elaborar suas próprias perguntas.

Leia também: história da terra Indígena Ibirama-La Klãnõ

Também faço um pequeno relato sobre a criação da Escola Getúlio Vargas no fim da década de 30, cuja função primeva era manter a ordem governamental integracionista das novas gerações Xokleng. A escola atendia alunos nascidos na então Reserva Indígena Duque de Caxias (atualmente Terra Indígena Laklãnõ/Xokleng), criada em 1926, e crianças não indígenas filhas de moradores locais e funcionários do SPI. As salas eram mistas, mas algumas aulas eram direcionadas ao gênero da criança. Os alunos aprendiam disciplinas formais como português, história, matemática e civismo, assim como cuidados com o lar, cultivo da terra e noções básicas de higiene. Em suma, sem a documentação encontrada e preservada esses dois trabalhos não teriam sido possíveis.

Rafael Hoerhann é doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Redação
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