sexta-feira, 19 de abril de 2024
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Blumenau

O rio

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Rio Itajaí-Açu (Eraldo Schnaider)

A história de Blumenau: chegamos aqui quando eu estava com dezesseis anos. Meus pais gostam de contar sobre como adquiriram a casa, perguntando se precisariam de uma lareira (acreditando na ideia de que o Sul, por ser o Sul do país, era naturalmente gelado) e recebendo uma risada na cara da parte da moça da imobiliária. O que meus pais não sabiam então, e que descobriríamos mais tarde, era que os verões de Blumenau só conseguiam ser piores do que passar uma temporada no próprio inferno.

Meu quarto era o menor da casa. A pessoa que ali dormira antes, que imagino ter sido uma menina, deixou para trás um quadro dos 101 Dálmatas (que perdi) largado no chão e adesivos coloridos (que tirei) grudados nas janelas. As paredes eram brancas, mas tornaram-se roxas. Pregamos meus pôsteres, meus quadrinhos da Ana Bolena, e instalamos uma estante para a pequena biblioteca que eu trazia de São Paulo.

A nova casa não tinha uma lareira, mas tinha cicatrizes que me pareciam um pouco sinistras, lembranças de, meus pais ficaram sabendo, uma enchente passada.

Em Blumenau, falava-se das enchentes como uma coisa comum demais para que eu me sentisse confortável. Mas a Grande Enchente, a mítica e monstruosa enchente que fizera capas de jornais e matérias e programas de televisão, que deixara nossa nova casa marcada; aquela enchente, diziam, era coisa do passado.

No meu quarto, antes de desmontá-lo, descobrimos que o o topo do armário usado pela menina do quadro dos dálmatas ainda guardava restos de lama, da água que quase engolira a casa inteira.

Eu cheguei à cidade com a ideia de que nunca veria uma enchente grande. Em meus anos morando em Blumenau, presenciei três, e nas três ocasiões tivemos de abandonar a casa antes que o rio avançasse e nos deixasse isolados, sem água e sem luz. Do quarto dos hotéis que conseguíamos, ficávamos à espera de notícias, checando o site da Defesa Civil, checando os noticiários, telefonando para conhecidos. Esperar era tudo que fazíamos, porque ninguém queria dizer em voz alta o que pensava: que talvez a água tivesse tomado tudo, a casa por completo. Que perderíamos boa parte dos nossos bens se o nível do rio subisse demais.

Na segunda enchente, soubemos que a água invadira a casa porque um vizinho, navegando pelas ruas com seu barco, fez o favor de nos informar (eis uma coisa que você nunca imagina quando se muda para o centro urbano: que, algum dia, alguém vá visitar a sua casa de barco).

A verdade é que tivemos sorte. Só um pouco de lama havia entrado, cinco centímetros que foram difíceis de se limpar, que encheram a casa de um cheiro de mofo e de terra e de podridão que perdurou por meses, mas que pouco significavam para quem se encontrava em uma parte mais baixa da cidade e perdera tudo.

O entendimento entre Blumenau e o rio é antigo, eu vim a compreender. O rio é um aliado, cercando e determinado como e para onde a população cresce, mas é também um inimigo. O rio avança, indiferente a nós, levando o que bem entende. E, após sua passagem, os moradores erguem-se uma vez mais. De certa forma, a resistência é admirável, a capacidade de refazer-se do zero. Mas também é triste, mostrando sempre quão impassível é a natureza diante dos esforços humanos, quão pouco prestativo o governo pode ser para quem sofre há décadas.

Quando chegamos à cidade, minha mãe quis integrar-se por meio da história local. Um dos primeiros livros que ela comprou após nossa mudança tratava dos colonos que fundaram Blumenau. O relato de como um deles acabou levado pela correnteza do rio deixou-a para sempre impressionada, convencida da fúria daquelas águas tão próximas a nós. Mesmo antes das enchentes, o rio representava, para minha mãe, uma ameaça. Depois das enchentes, suas suspeitas apenas se concretizaram. Parece óbvio apontar que após passar por um evento traumático seria apenas natural temer a fúria do rio, mas estou certa de que não foi a lama que entrou na nossa casa o que sustenta o medo da minha mãe, e sim o pobre rapaz que as águas levaram. Ainda hoje, quando passo em frente ao monumento erguido aos fundadores, paro por alguns segundos, tentando encontrar o nome do colono. É quase um sinal instintivo de respeito, que incutiu-se na minha mente desde que eu soube da história. Ele está lá, em nome, mas é o rio seu túmulo.

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