A sobrevivência é instinto básico em todas as espécies. Menos na humana, parece. Se o que nos diferencia das amebas, larvas e pulgas é a consciência do que devemos fazer e como nos comportar, para muita gente essa aptidão não serve pra nada. Há poucos dias presenciei no trânsito um sujeito levando duas crianças pequenas soltas no banco de trás do carro. Elas deviam ter entre quatro e seis anos. Além dessa insanidade, o demente avançava antes da hora todos os semáforos que tinha pela frente, cantando pneu. Não importa se o sujeito era pai, tio ou o quê das crianças. A preservação da vida, para ele, não tinha importância alguma.
Nesse momento pensei na justificativa dada por especialistas em comportamento de que se não fosse a impunidade as pessoas respeitariam as leis. Em países do Primeiro Mundo, alegam, as leis de trânsito são cumpridas porque desrespeitá-las significa receber pesadas multas ou até ir para a prisão. Aí é que vem nossa desvantagem. No Brasil todos levam a sério a ideia de que a lei não existe para ser cumprida, mas para ser interpretada. Então nunca se sabe o que o cara pálida ao seu lado está pensando a respeito do sinal vermelho e das placas de sinalização. Ele pode achar que para ele não se aplicam as regras, e este comportamento se cultiva em todos os lugares e situações, tornando o convívio social complicado. Numa esfera antes da lei existe o bom senso.
Não precisa haver lei para que não se fure filas, que não se suje a rua, ou se berre ao celular ao lado de outras pessoas. Agir de forma civilizada é uma questão de sensatez, mas como nesta terra de Cabral se faz outras coisas ainda piores, o tempo todo, podemos deduzir o porquê de sermos tão atrasados. Se a população não tem bom senso e ignora as leis, por que serão diferentes os políticos e administradores?
No Rio de Janeiro entrou em vigor no ano passado o Projeto Lixo Zero, que impõe multas que variam de 98 a 3 mil reais para quem for flagrado jogando lixo na rua, ainda que seja xepa de cigarro. Pois bem, em março o prefeito Eduardo Paes foi filmado durante um evento político atirando na rua restos de uma fruta que estava comendo. Como a imagem caiu na rede, ele ficou mal na fita, então demagogicamente mandou a Companhia de Limpeza Urbana emitir uma multa contra ele mesmo. Isto é um exemplo de dupla transgressão: ao bom senso e à lei. No cômputo geral, o Brasil demonstra não ter capacidade de entender que a conjugação dos dois é que torna um país civilizado. Não importa se é um cidadão comum ou um deputado.
No caso do trânsito, ambos cometem as mesmas irresponsabilidades, às vezes com consequências funestas. É possível também que ambos desrespeitam e incomodem o seu vizinho da mesma maneira. Esse comportamento passa de pai para filho, está no DNA, e a transgressão passa a ser quase uma norma da nossa cultura. Não adianta a Constituição dizer que todos têm direito à moradia, saúde, educação, segurança e outros benefícios. Quem deveria tomar a iniciativa de fazer a Constituição ser respeitada, bom senso sequer tem, então se amplia o caminho rumo ao fracasso.
Existe solução? Está aí o maior mistério que nenhum jornal pode responder. O papel do jornalista é expor e provocar. Se o que ele diz ou escreve leva à reflexão seu papel está cumprido. A avacalhação e a vagabundagem já chegaram a um tal nível de desenvolvimento no Brasil que mudar essa tendência seria tão surpreendente quanto foi para o chineses descobrir a pólvora dois mil anos atrás.
O autor é jornalista