A cultura é um produto de seu tempo. Nos calabouços em que as produções culturais são realizadas a arte de calar-se jamais pode ser usada. Em outubro tirei uns dias de férias para acompanhar um evento literário em São Paulo e como de rotina, dei-me de presente assistir uma peça de teatro onde a personagem principal era interpretada por Marília Gabriela. Enquanto escondo-me da sociedade em escapismos, a vida e suas mazelas teimam em escorrer pelas frestas das paredes e portas de meu esconderijo. O espetáculo, chamado “A casa de bonecas, parte dois”, mostra o retorno da personagem vivida por Gabí em busca da assinatura de seu ex- marido para oficializar o divórcio. O roteiro poderia ser simples se a peça não fosse vivida no início do século XX.
Nos dias atuais, enquanto os valores duramente conquistados e solidificados entram em alerta de retrocesso, tal peça chega a ser subversiva e marginal. Marília Gabriela mostra-se uma afronta aos padrões conservadores e consagra-se uma verdadeira heroína contra os tempos sombrios, tais adjetivos não seriam usados se a peça fosse exibida em anos anteriores. Em certo momento, chegando ao fim da peça, enquanto o patriarcado proferia seu discurso derradeiro, a personagem principal profere: “Não preciso de salvador, porra”. E foi ali que percebi: a peça não diz respeito apenas sobre os direitos das mulheres, mas sim sobre a liberdade.
Dei-me conta que a liberdade somente é sentida quando as paredes que compõe nossas prisões são derrubadas. E, apesar de salvadores serem úteis, somente nós podemos romper as cordas que nos amarram. Através disso, compreendi o quanto as paredes teimam e permanecer apesar de tentarmos destruí-las. Durante as minhas tentativas de sono furtadas pelo barulho de São Paulo, conclui que a destruição de nossas paredes é apenas simbólica, e não efetiva, pois, apesar de tudo o que fizemos, vivemos acorrentados.
As emoções que sinto quando vou ao teatro são das mais intensas possíveis. No ano passado, quando fui ver “Les Misérables” tive que sair antes do término do espetáculo, não aguentei ver o tamanho sofrimento de um povo, porém, nesta peça escrita por Lucas Hnath e dirigida por Regina Galdino, saí sorridente com a esperança que haverá luta por dias melhores.