domingo, 10 de novembro de 2024
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Irlanda do Norte: oito anos depois, os testes de uma “divisão unida”

Indicado a sete Oscars, entre eles o de “melhor filme”, “Belfast” foi um dos grandes destaques da grande noite do cinema mundial. A produção foi chamada por alguns críticos, no bom sentindo, de um “dramalhão”, e mesmo com algumas falhas de construção permitiu ao diretor Kenneth Branagh reviver um pedaço da infância na agitação que estava imersa a capital da Irlanda do Norte.

O filme passa-se, justamente, em 1969, quando os conflitos sectários entre católicos e protestantes começavam a ficar cada vez mais tensos. Amor adolescente, problemas de família, uma infância roubada pelos intensos embates entre as duas comunidades nas ruas da cidade fazem de Belfast um filme quase “comum” e belíssimo, tendo como pano de fundo uma das histórias mais usadas pelo cinema por várias vezes, e até por este escriba (mais uma vez).

Recentemente, a equipe do FAROL me provocou a reviver uma crônica que escrevi em 2014. Estava terminando a faculdade de jornalismo no antigo IBES Sociesc (hoje Unisociesc) e o assunto Irlanda do Norte acendeu na minha mente como pura curiosidade: como, depois de tantos anos, estariam vivendo comunidades de católicos e protestantes depois de períodos de turbulência, hostilidades, intolerância e mortes – muitas mortes – em uma pequena província britânica?

Hoje, voltar a olhar para o tema depois de tanto tempo obriga a gente a rever pontos da história contada, até pela necessidade de atualizar o assunto. De 2014 para cá, o contexto onde a Irlanda do Norte está inserida mudou muito e, talvez, não se fale mais em movimentos violentos frequentes nas esquinas de Belfast e Derry, onde a maioria dos conflitos aconteceram no passado. A província do Ulster, como também é conhecida, ainda vê as passeatas dos orangistas, antigos teimosos do unionismo, mas a tensão febril não é mais a mesma (felizmente!).

Para se ter uma ideia, em fins de março, o nível de alerta para o terrorismo no Ulster foi reduzido de “grave” para “substancial”, o terceiro nível numa escala de cinco, o que é uma evolução considerável depois de 12 anos e ainda as vésperas de uma eleição regional. “É uma prova do progresso significativo que a Irlanda do Norte fez e continua a fazer em direção a uma sociedade pacífica, mais próspera e segura”, salientou o ministro norte-irlandês Brandon Lewis.

Lewis é secretário de estado para a Irlanda do Norte e também observa que, mesmo com este longo período de paz vivido no Ulster, há quem ainda insista em problemas em movimentos violentos, hoje quase tão raros que não se pode falar em tensão nas ruas e bairros, ainda separados por barreiras físicas e ostentando os característicos murais com mensagens unionistas ou nacionalistas irlandesas em suas paredes. Mas ouve-se o sopro do vento, existe uma certa calma, talvez nervosa, mas pouco percebida por uma ou outra tensão política restante do passado.

Depois do Domingo Sangrento, o aumento dos confrontos chegou a ser considerado uma espécie de “guerra civil” (Abril)

Os resultados conseguidos desde o Acordo de Belfast (ou Acordo da Sexta-Feira Santa), assinado em 1998, são visíveis, sobretudo na política. Foi tamanha a obediência aos pontos e detalhes que, até hoje, a administração política conjunta entre unionistas e o Sinn Fein, o partido republicano irlandês, segue em trabalho conjunto e enfrentando tempestades como as que veremos logo nesta crônica.

E cabe aqui ressaltar um personagem icônico neste processo de trabalho político conjunto no Ulster: o reverendo e antigo líder unionista Ian Paisley, que atravessou praticamente todo o período do conflito sectário como o mais intransigente líder popular destes tempos. Apelidado por vezes de “Doctor No” por sua postura dura contra o trabalho conjunto das duas comunidades, Paisley foi peça-chave nas negociações de 1998, mas viveu uma guinada de 180 graus em suas filosofias anos depois e da forma mais improvável que se podia haver.

Em 2007, Paisley foi eleito primeiro-ministro do Ulster e, respeitando os pontos de acordo de nove anos antes, dividiu o poder com o vice-primeiro-ministro Martin McGuinness, na época número dois do Sinn Fein e ex-líder do Exército Republicano Irlandês, o famigerado IRA. O trabalho em consonância e cooperação com antigos inimigos surpreendeu a muita gente, mas o próprio reverendo era outra pessoa depois de tantos anos: “a primeira vez em que vi (McGuinness) disse a ele que poderíamos nos espancar cada vez que nos víssemos (…) mas que tínhamos um trabalho a fazer. E foi o que fizemos (…) Católicos e protestantes nunca estiveram tão próximos e todos dizem: ‘nunca mais dias tristes, nem assassinatos'”, declarou Paisley, que morreu em 2014.

No entanto, esta cooperação tem um teste difícil pela frente: com a ainda recente assinatura do Brexit, a preocupação maior dos norte-irlandeses tem a ver com a fronteira comum de mais de 400 quilômetros entre o Ulster e a República da Irlanda. A saída do Reino Unido da União Européia foi negada por grande parte do eleitorado da província que vê neste movimento um prejuizo enorme para a economia da ilha, altamente dependente das relações livres com os irlandeses do sul, e a eminencia da criação de uma fronteira entre as duas irlandas, este último o menos provável nas preocupações da população.

Os unionistas já se sentem acoçados com o que é chamado de “protocolo específico” da Irlanda do Norte criado pelo Brexit, que seria, na prática, criar controles aduaneiros entre a província e o Reino Unido, mantendo o Ulster no mercado comum ao qual pertence desde 1973. Apesar de ser uma solução interessante, irrita os defensores da unidade com os ingleses que veem a medida como uma ameaça a integridade territorial.

A medida já causou seus primeiros “estragos” na certa estabilidade norte-irlandesa, como a saída do primeiro-ministro Paul Givan, dirigente do Partido Democrata Unionista (DUP), que se demitiu em protesto contra a medida. A questão é um ingrediente pesado para as eleições locais marcadas para 5 de maio e que podem trazer para a ebulição o panorama político da província. E sondagens recentes já afirmam que o domínio unionista pode estar seriamente ameaçado de cair por terra ante as propostas do Sinn Fein.

Mas talvez, o grande teste desta tolerância deve vir apenas em 2023. É a data prevista para que as barreiras internas que separam bairros católicos e protestantes sejam retiradas em várias cidades onde eles foram levantados, sobretudo em Belfast, onde existem a maior parte dos chamados “muros da paz”. Históricos mas, em suma, símbolos de uma divisão nervosa que vem ficando no passado, ano após ano a retirada destas barreiras é um compromisso reforçado pelo governo norte-irlandês, mas muitas perguntas ficam pelo ar.

Será mesmo o marco de que este passado sangrento, de 3,5 mil mortos deixou verdadeiras lições para as duas comunidades? A política desenvolvida por tantos anos desde 1998, de trabalho conjunto e unido, resistirá ao fim destes muros? Tensões como as de hoje, a exemplo do resultado do Brexit, são alguns dos testes que unionistas e irlandeses passam para mostrar que nada mais se resolve por completo em embates nas ruas e bombas disparadas pelo IRA, levando vidas civis e corroendo a opinião pública sobre a pequena província.

Os tempos são bem outros e nada mais parece se resolver na raiva e na guerra. Novidades virão e, com certeza, esta crônica também será parte de um passado tal como as palavras de 2014. Espero que eu esteja errado em meus temores e que a Irlanda do Norte, enfim, tenha encontrado o caminho que faz lições do passado serem aprendidas para se pensar num futuro que não enxergue mais cruz e gritos fanáticos, mas uma verdadeira paz e cooperação em prol do bem comum, como uma só Irlanda.

Como diria qualquer católico ou protestante, “que assim seja!”

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