sexta-feira, 29 de março de 2024
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De volta ao Rio de Janeiro

Faz uma década desde a última vez em que estive no Rio de Janeiro. E já começo o texto com uma mentira: desci no Aeroporto do Galeão em 2011, para pegar um avião que me levaria a Londres, o que significa que, por pelo menos algumas horas, pisei no Rio; mas procedo. Fazia anos que eu não estava na cidade, que não andava pelo lugar em que (acidentalmente) nasci, em que passei inúmeras férias de verão na infância e no qual morei entre 1999 e 2001. As pessoas que aqui visitam ocasionalmente pensam no Rio como praias e sol e favelas e violência e novelas passadas no Leblon. Eu penso no condomínio em que minha avó mora: prédios alaranjados, meio ocre, algo conveniente para construções numa rua chamada Rua das Laranjeiras, com seus quatro blocos cheios de esconderijos para pega-pega, playground com uma casinha da madeira e piscina assombrada por morcegos no período noturno, quando senhoras de idade apareciam para fazer hidroginástica. Eu penso no trajeto que fazia até a escola de freiras em que estudei, onde um professor de religião, em dia em que estava particularmente inspirado, me condenou ao inferno porque eu nunca fui batizada. Penso nas bancas de jornais em que eu comprava figurinhas para meu álbum de Pokémon e mangás sobre como desenhar mangás—da época em que eu achava que tinha algum talento para desenho. Penso na pizzaria de mini-pizza de catupiry a sete reais; na padaria que fazia a melhor carolina recheada do mundo e no mercadinho do português em que minha mãe e minha avó faziam compras.

As coisas mudaram desde aquela época. O mercadinho do português fechou: virou um grill. A melhor carolina recheada do mundo revelou-se a pior carolina recheada do mundo, depois de minha peregrinação esperançosa inútil até a padaria de esquina, que tantas felicidades me trouxera quando criança. Mas a pizzaria da pizza por sete reais ainda sobrevive; e no mesmo lugar. Só não conferi se pelo mesmo preço. Ademais: confesso que teria medo de prová-la. O paladar da eu pré-adolescente já não bate mais com o paladar da eu de 20 e tantos anos. Comi em restaurantes menos suspeitos durante minha curta estada. Perto de um deles, fotografei a pichação “- CARRO + ZOEIRA,” que provavelmente seria meu lema de família se eu morasse no universo de Game of Thrones.

Cometi algumas besteiras enquanto morei no Rio. Participei de feiras duvidosas, possivelmente realizadas em espaços ilegais, onde vendia-se muita pirataria e onde comi espetinhos de carne que me pareceram maravilhosos (o que significa que provavelmente eram feitos de carne de gato). Fui e voltei de muitos lugares desacompanhada, em uma época em que eu não havia sido tão condicionada a temer o que me cercava (o que certamente era muita ingenuidade). Despistei bêbados: uma dupla que perseguiu eu e minhas amigas, todas adolescentes, por ruas escuras, até que encontramos refúgio num bar. Me recordo que, depois do pavor, eu ri de tudo aquilo, como se mais uma aventura; hoje entendo que as coisas não são assim. Que o perigo é real e que nem todas as garotas conseguem se esconder em bares.

Não fiquei bronzeada. Pouco fui à praia enquanto morei no Rio. O que ganhei foram mechas loiras artificiais nos cabelos, porque estava na fase Spice Girls. E, depois, para comemorar meu aniversário de doze anos, pintei-os de rosa. Uma das moradoras do prédio quis saber que se eu pretendia virar roqueira. Não pretendia: só queria o cabelo rosa.

Algumas pessoas me enxergavam com suspeita, porque eu andava com os garotos, jogava vídeo-games e RPGs com eles, comentava (sem nenhum embasamento) sobre futebol, falava palavrões e usava só sutiã esportivo. Diziam que eu precisava me dedicar à companhia feminina. Porém: jamais evitei outras meninas. Era simplesmente o caso de que o condomínio não abrigava garotas da minha faixa etária o suficiente. E as que ali já existiam não pareciam querer muita coisa comigo.

Férias no Rio me eram agradáveis. Morar no Rio foi experiência diferente: deixou alguns traumas. A situação familiar que nos levara até ali não era das melhores. Passei por vários colégios diferentes, com dificuldade de me adaptar a cada um deles. Aprendi a odiar o caminho para a escola. Desenvolvi medo do som de um despertador, que me puxava para o dia que eu teria preferido não encarar. Entrei numa mini-depressão. Foi a época em que me tornei introspectiva, um pouco adolescente problemática, mas também a leitora obcecada que sou hoje. Sentia falta da cidade em que eu crescera (São Paulo), da minha antiga casa, dos poucos amigos. Ler era minha constante; minha companhia mais leal.

O Rio, para os outros: praia e paraíso e inferno e uma contradição gigantesca. Para mim: calor excessivo, devorar os livros de Harry Potter na cadeira de balanço da minha avó, suando sob o vento fraco do ventilador (foi só depois de me mudar para Blumenau que descobri que existiam verões piores).

As lembranças que mais prezo do Rio são também as mais simples: andar até o Largo do Machado com meu pai para comprar uma casquinha de sorvete do McDonald’s. Nadar na piscina do condomínio da minha avó, desafiando-me a ir até a parte mais funda, onde meus pés não alcançavam (quando começaram a alcançar, perdeu a graça). Balançar e balançar no balanço do play até sentir que meus pés estavam a muitos metros do chão e minha cabeça quase tocando o céu.

Me lembro do canto enlouquecedor das cigarras do outro lado da janela, do cheiro meio repulsivo e tão característico e nostálgico que certas partes das ruas de Laranjeiras e do Catete têm.

O Rio de Janeiro é uma cidade tão geograficamente afortunada que poderia ter sido linda (não houvesse acabado estragada pelas mãos humanas). O Rio de Janeiro é parte inescrutável da minha infância. O Rio é o bolo que chocolate que só minha avó sabia fazer, que sempre nos esperava depois da longa viagem, e que ninguém mais consegue reproduzir.

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