Intolerância, intransigência, falta de diálogo, violência, tragédia. Invente qualquer outra definição diferente destas, pois todas serão inúteis diante do que há 45 anos – e ainda de forma branda nos dias atuais – viveu e vive o cidadão da Irlanda do Norte, que cotidianamente vive as consequências da divisão do país entre católicos e protestantes.
O conflito, enraizado no início do século passado, intensificado no fim dos anos 60 e início dos 70, e abrandado após um acordo em 1998 ainda hoje deixa cicatrizes impossíveis de ser preenchidas nas vitimas de sempre: A população civil. Seja de qual região que for, é ela a maior vitima do radicalismo, da morte presente e da incompreensão de correntes de pensamento divergentes, que a cada ano toma ruas de cidades como Belfast, a capital, e Derry, propagando ideias nem sempre toleradas, e muitas vezes conflitadas a força.
As diferenças vão muito além da fé, muito além também das palavras do Papa, odiadas até hoje por grande parte dos radicais protestantes. A questão maior dos conflitos tem a mão do governo britânico, que por muito tempo esteve passivo aos problemas do país, e que aos poucos tem encontrado soluções para reunir as duas religiões sobre o mesmo teto e pensar no futuro de forma conjunta.

Divergências marcadas com sangue
Separada da República da Irlanda em 1922, o Ulster (como também é conhecida a Irlanda do Norte) era predominantemente protestante e fiel as ordens da coroa britânica, preferindo integrar a união, juntamente com a Escócia e o País de Gales. O Éire (Irlanda livre) seguiu adiante com os percalços de todo país recém-independente, pobre e rural, e que hoje se constitui numa das mais fortes economias da Europa, além de 10º mais bem colocado no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em todo o mundo. Uma realidade bem diferente do que se veria nos vizinhos do norte no correr dos anos.
Até o fim dos anos 60, eram visíveis os atos de segregação e preconceito entre protestantes e católicos nos limites do Ulster. Católicos eram exclusos de melhores oportunidades de emprego, além de serem colocados em uma situação de quase marginalidade, em bairros insalubres e com péssimas condições de vida. Em meados de 1968, grupos de católicos começam a organizar as primeiras manifestações pacifistas reivindicando direitos civis e maior representatividade e oportunidades no país. Passeatas que, de maneira que evoluíam, entravam em choque violento contra grupos de protestantes radicais. E tudo com a total conivência da Polícia Real do Ulster, a RUC.

A situação, que já era caótica, se tornou incontrolável com o passar dos anos. Conflitos e batalhas campais se intensificavam nos arredores das principais cidades do país, como Derry e a capital, Belfast. Em todos os lugares era visível o clima de tensão, e apesar da presença do exercito britânico, que desde 1969 protegia os bairros católicos como o Bogside, em Derry (Londonderry), as tensões pioravam, sobretudo nas tradicionais e provocativas paradas dos orangistas e unionistas radicais nos feriados do país.
Eis que chega 1972, uma manhã de domingo na cidade de Derry, e com ele, outra manifestação católica que ia as ruas amparada pelo então mais do que nunca ativo Exercito Republicano Irlandês, o IRA. O objetivo da passeata seria a prefeitura da cidade e o grupo partia do Bogside. No entanto, o grupo de mais de três mil pessoas foi contido violentamente pelo exercito britânico. Foi uma ação totalmente desastrosa que ceifou no local a vida de 13 jovens e deixou outros 26 feridos gravemente. Dentre os conflitos entre os dois lados, foi o maior e mais marcante dentro da Irlanda do Norte, que somadas todas as “batalhas campais” registradas, registram mais de 4 mil mortos.

A reação ao “Domingo Sangrento” foi imediata. A embaixada britânica em Dublin, na Irlanda, foi incendiada por manifestantes. Na Câmara dos Comuns, o pronunciamento do então Ministro do Interior, Reginald Maudling, foi bruscamente interrompido no acesso de revolta da deputada católica irlandesa Bernardette Devlin, que desferiu socos e arranhões contra o político inglês. Nos anos anteriores a separação das duas religiões se tornara cada vez mais intensa por conta do radicalismo e intransigência de ambos os lados. Somam-se também as atividades cada vez mais constantes das forças paramilitares de ambos os lados – O IRA e os principais movimentos extremistas protestantes – que vingavam os mortos com um número cada vez maior de atentados, tanto no Ulster quanto na própria Inglaterra.
Estava armada a fórmula para o desastre contínuo, que parecia resvalar para a inevitável guerra civil. Para piorar, nenhum governo britânico parecia querer efetivamente tomar a rédea da situação. Anos se passavam, e uma espécie de solução concreta para as divergências de ambos os lados saiu apenas em 1998, quando os governos britânico e irlandês assinaram o Acordo de Belfast, que previa nos principais pontos negociados temas como o desmantelamento de facções paramilitares, eleições livres, autonomia para a Irlanda do Norte e igualdade de direitos. Parecia o fim das tensões, apenas parecia…

Um Ulster dividido… para sempre?
Passados 16 anos após a assinatura do Acordo de Belfast, e nove desde o encerramento das atividades do IRA (2005), a Irlanda do Norte vive em uma relativa paz e tranquilidade. No entanto, este sossego, as vezes quebrado pela revolta branda dos católicos contra as paradas orangistas de hoje em dia, foi conseguido da pior, porém, mais eficaz maneira: A divisão física dos bairros católicos e protestantes nas cidades do país, sobretudo em Belfast, a capital. Grandes muralhas separam na cidade bairros das duas religiões. Portões controlam a entrada de pessoas para os dois lados na parte da noite. Não há linhas de ônibus que liguem bairros católicos a protestantes e apenas o centro da capital norte-irlandesa é considerada uma “zona mista”.

Opiniões expressam a divergência entre
católicos e protestantes. (Estadão)
Pelas esquinas de ambas as comunidades, as respostas são evasivas e curtas. Moradores católicos e protestantes consideram os muros um simples “fator de segurança” e evitam prolongar o assunto. Trafegar pelas ruas de Belfast e de outras cidades do Ulster é como voltar ao tempo do muro de Berlim. Com a diferença em que os dois lados, ao contrario da “saudade” alemã, ainda tem um longo caminho para entender o significado da palavra “tolerância”. Os murais nas paredes de casas e nos muros viraram uma espécie de “marca registrada” de Belfast, no entanto, as mensagens de cunho político de ambos os lados não nega, ainda há um longo caminho para a paz e o respeito.
Vale lembrar que o conflito entre protestantes e católicos na Irlanda do Norte é muito além, ou totalmente distante da fé. Durante os anos, ambas as religiões tem trocado em praticamente todas as nações do mundo experiências e conversas pacíficas e amigáveis, compartilhando da vida em sociedade independente da fé que professam. Mesmo tão distante de Belfast, Blumenau se cita como um exemplo claro. Há muitos anos, tanto a diocese quanto o sínodo partilham de opiniões iguais e, em várias ocasiões, reúnem-se para a realização de cultos ecumênicos, promovendo a ótima relação entre as duas religiões.
A questão é que a Irlanda do Norte vive ainda presa, em muitos dos habitantes, ao velho fanatismo ao Reino Unido, cujos radicais unionistas até hoje mantém a velha intransigência característica dos anos negros dos conflitos. A própria Inglaterra, conhecedora do problema crônico da intolerância de católicos e protestantes no Ulster, simplesmente teve um comportamento passivo e negligente diante da situação da nação-satélite, permitindo, sem uma resolução efetiva e sem a concordância de ambos os lados, o prolongamento das tensões e a intolerância crônica. O Acordo de Belfast ainda mantém uma certa paz, mas ela poderá durar tanto tempo como se imagina? Só o futuro e os norte-irlandeses podem responder.

A promessa feita pelo primeiro-ministro britânico David Cameron para 2023 vale a pena ser aguardada para ver. Segundo ele, os grandes muros que separam bairros católicos e protestantes devem ser removidas como parte de um processo de paz que inclui assim também a população em geral. Com muros ou não, a Irlanda do Norte segue assim procurando o meio-termo da convivência entre os cidadãos que a habitam. Se a paz é assim um sonho possível, como corriqueiramente se diz, por que ela ainda não dá certo efetivamente no Ulster?
A resposta, daqui a nove anos, se Deus, seja ele católico ou protestante, quiser.