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Fascismo: um jogo de cores de um prisma sempre oscilante

Não existe uma só palavra mais livremente usada a torto e a direito por pessoas que não sabem o seu significado do que “fascismo”. Na realidade, quanto mais alguém usa a palavra “fascista”, em sua linguagem cotidiana, menor a probabilidade de que saiba do que está falando. É possível pensar que a exceção a essa regra seriam os especialistas em fascismo. Mas o que realmente distingue a comunidade de especialistas é sua honestidade. Nem mesmo os profissionais entendem, com exatidão o que seja o fascismo. Incontáveis pesquisas acadêmicas começam com esse reconhecimento proforma, tamanha é a quantidade de opiniões divergentes que cercam o termo.

Embora os especialistas admitam que a natureza do fascismo seja vaga, complicada e aberta a interpretações amplamente divergentes, muitos liberais e esquerdistas modernos agem como se soubessem exatamente o que é o fascismo. Mais ainda: eles o vêem em toda a parte – exceto quando se olham no espelho. Na verdade a esquerda brande o termo como uma clava para expulsar seus oponentes da praça como se fossem panfletistas sub-elevados. Afinal de contas ninguém leva a sério um fascista. Você não tem nenhuma obrigação de ouvir os argumentos de um fascista, nem de se preocupar com seus sentimentos ou direitos. Porque não há nenhuma razão para gastar saliva com gente assim.

Em resumo, “ fascista” é uma palavra moderna para designar um “ herege” e estigmatizar um indivíduo que merece ser excomungado do corpo político. A esquerda usa outras palavras – racista, machista, homofóbico – para propósitos semelhantes, mas essas tem significados menos elásticos. Fascismo no entanto, é um jogo de cores de um prisma sempre oscilante.

Questionados no que é fascismo, certos segmentos da esquerda respondem com a seguinte definição: “qualquer coisa não desejável”. Assim, desse modo conseguem ocultar de olhares inquisitivos suas próprias inclinações fascistas. No entanto, quando forçados a responder, a resposta é, usualmente, mais instintiva, visceral ou desdenhosamente irônica do que racional ou imbuída de princípios.

A lógica para a esquerda é expressar uma opinião próxima do vigente multiculturalismo e definições semelhantes, coisas que os liberais aprovam -, e que coisas boas não podem ser fascistas pela simples razão de que os liberais as aprovam.

De fato, esse parece ser o argumento irredutível de inúmeros escritores que loquazmente usam a palavra “ fascista” para descrever “os caras maus”, baseando-se exclusivamente no critério de que os liberais acham que eles são maus.

Fidel Castro, se poderia argumentar, é um fascista que segue a cartilha. Mas como a esquerda aprova sua resistência ao “ imperialismo” dos Estados Unidos – e porque ele usa as palavras mágicas do marxismo-, ela afirma que não apenas é errado, mas objetivamente estúpido, chamá-lo de fascista. Enquanto isso, chamar Ronald Reagan, George W. Bush, Rudy Giuliani e outros conservadores de fascistas é simplesmente o que fazem as pessoas sofisticadas, que pensam certo.

O principal furo em tudo isso é que o fascismo propriamente entendido simplesmente não é um fenômeno da direita. Esse fato – uma inconveniente verdade, se alguma vez houve uma, é obscurecido em nosso dias pela igualmente equivocada crença de que o fascismo e comunismo são opostos. Na realidade, eles estão intimamente relacionados e, historicamente, tem competido pelas mesmas bases, buscando dominar e controlar o mesmo espaço social. O fato de aparecerem como opostos polarizados é um truque da história intelectual e o resultado de um esforço concentrado de propaganda da parte dos “ vermelhos” para fazerem os “pardos” parecerem objetivamente maus e como o “outro” (ironicamente , a demonização do “outro” é considerada um traço definidor do fascismo).

Mas, em termos de suas teorias e práticas, as diferenças são mínimas.
É difícil agora, à luz de seus maciços crimes e fracassos, lembrar que tanto o fascismo quanto o comunismo foram, em sua época, visões utópicas e portadores de grandes esperanças. Mais ainda, o fascismo, assim como o comunismo era um movimento internacional que atraiu seguidores em todas as sociedades ocidentais.

O líder fascista Italo Balbo e Getúlio Vargas no Palácio do Catete, em 15 de janeiro de 1931.
O líder fascista Italo Balbo e Getúlio Vargas no Palácio do Catete, em 15 de janeiro de 1931.

O fascismo surgiu das cinzas da velha ordem européia em fins do século XIX. Ele reuniu os vários elementos que compunham a política e a cultura européias: a ascensão do nacionalismo étnico, o estado do bem-estar social de Bismark e o colapso do cristianismo como fonte de ortodoxia social e política e de aspirações universais. Em lugar do cristianismo, o fascismo oferecia uma nova religião do Estado divinizado e a nação como uma comunidade orgânica.

No entanto, hoje não podemos reconhecer facilmente essas semelhanças e continuidades, e menos ainda falar sobre elas, porque todo esse campo de análise histórica foi posto a margem após o Holocausto.

Antes da Segunda Guerra Mundial o fascismo era amplamente visto como um movimento social progressista, com muitos adeptos liberais e esquerdistas na Europa e nos Estados Unidos; os horrores do Holocausto mudaram completamente nossa imagem do fascismo, que passou a ser visto como algo maligno e inevitavelmente ligado ao nacionalismo extremista, paranoia e racismo genocida. Depois da Segunda Guerra Mundial, os progressistas americanos que haviam louvado Mussolini e até olhado Hitler com simpatia nas décadas de 1920 e 1930 tiveram que se distanciar dos horrores do nazismo. Por conseguinte, intelectuais esquerdistas redefiniram o fascismo como “ direitista”  e projetaram  seus próprios pecados sobre os conservadores, embora continuassem a tomar grandes empréstimos do pensamento fascista e pré-fascista.

Grande parte dessa história alternativa pode ser encontrada com bastante facilidade, se alguém tiver olhos para vê-la. O problema é que a narrativa liberal- progressista com a qual a maior parte de nós cresceu tende a pôr de lado esses fatos incongruentes e inconvenientes e a inventar razões para tomar como marginal aquilo que, de fato, é central.

Citarei um exemplo. Contando com o benefício da visão retrospectiva, é difícil entender por que alguém duvida da natureza fascista da Revolução Francesa. Poucos negam que ela tenha sido totalitária, terrorista, nacionalista, conspiratória e populista. Produziu os primeiros ditadores modernos, Robespierre e Napoleão, e baseava-se na premissa de que a nação deve ser governada por uma vanguarda iluminada que serviria de voz autêntica, orgânica da “ vontade geral”. A mentalidade jacobina paranoide transformou os revolucionários em pessoas mais selvagens e cruéis do que o rei que haviam substituído. Robespierre resumiu assim a lógica totalitária da revolução: “Existem apenas dois partidos na França: o povo e seus inimigos”.  Precisamos exterminar esses vilões miseráveis que estão eternamente conspirando  contra os direitos do homem… Precisamos exterminar todos os nossos inimigos”.

Já não é controvertido dizer que a Revolução Francesa foi desastrosa e cruel. Mas é profundamente controvertido dizer que foi fascista, porque a Revolução Francesa é o fundamento da esquerda e da “ tradição revolucionária”. Mas se a Revolução Francesa era fascista, então seus herdeiros teriam de ser vistos como frutos dessa árvore envenenada e, por fim, o próprio fascismo seria corretamente posto no lugar que lhe cabe na história da esquerda. Mas, como isso causaria uma desordem sísmica na visão de mundo esquerdista, eles adotam a dissonância cognitiva e recorrem a um golpe de mão terminológico.

Assim chegamos a visão de mundo da esquerda brasileira. No Brasil de hoje, ainda muitos professores não são capazes de oferecer informação consistente sobre esta perversa impostura. Auto-intitulados de livre-pensadores, encaminham os alunos a labirintos irracionais, porque não dão a devida importância que os mesmos possam adquirir conhecimentos de história, de fatos históricos fartamente documentados.

Se partidos políticos propositadamente apresentam teorias conspiratórias e revisionistas que alimentam um falso imaginário e de retórica intolerante, é dever de professores jamais referendar tamanha impostura perversa.

Muitos liberais e esquerdistas modernos agem como se soubessem exatamente o que é o fascismo. Mais ainda: eles o vêem em toda a parte – exceto quando se olham no espelho.
Muitos liberais e esquerdistas modernos agem como se soubessem exatamente
o que é o fascismo. Mais ainda: eles o vêem em toda a parte – exceto quando se
olham no espelho.

Acrobacias midiáticas oferecem condições para dissimular outras verdades. Prestimosamente, alardeia-se o embuste intitulado de
“golpe” em curso no Brasil como uma verdade absoluta. Assim, uma presidente, afastada legitimamente pelo Congresso Nacional, tornar-se vítima de um complô regido por conspiradores – a melhor resposta para encobrir irresponsabilidades governamentais.

Tentar comparar o Holocausto (Shoah), o maior crime já cometido contra a humanidade, a petistas perseguidos pelo “fascismo” é uma afronta a memória das vítimas e de seus familiares. A verdade histórica do Holocausto (Shoah) pode somente ser contada por historiadores e vítimas. Jamais por oportunistas e rábulas.

O autor é historiador.

Fontes consultadas:
Golberg, Jonah – FASCISMO DE ESQUERDA. A HISTÓRIA SECRETA DO ESQUERDISMO AMERICANO. RIO DE JANEIRO: EDITORA RECORD, 2009.
Tucci Carneiro, Maria Luiza – CIDADÃO DO MUNDO: O BRASIL DIANTE DO HOLOCAUSTO E DOS JUDEUS REFUGIADOS DO NAZIFASCISMO. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010.
Tucci Carneiro, Maria Luiza / Croci, Federico – TEMPOS DE FASCISMOS: IDEOLOGIA – INTOLERÂNCIA – IMAGINÁRIO. Editora: Edusp / Imprensa Oficial / Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2010.
Golberg, Jonah – FASCISMO DE ESQUERDA. A HISTÓRIA SECRETA DO ESQUERDISMO AMERICANO. RIO DE JANEIRO: EDITORA RECORD, 2009. INIMIGOS ABUSIVOS E DESERTORES COVARDES

Sérgio Campregher
Sérgio Campregher
Sérgio Campregher é historiador pela Uniasselvi/Fameblu e fala sobre política nacional e internacional e curiosidades. Escreve de Blumenau.
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