sexta-feira, 19 de abril de 2024
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A dolorida divisão religiosa na Irlanda do Norte

Intolerância, intransigência, falta de diálogo, violência, tragédia. Invente qualquer outra definição diferente destas, pois todas serão inúteis diante do que há 45 anos – e ainda de forma branda nos dias atuais – viveu e vive o cidadão da Irlanda do Norte, que cotidianamente vive as consequências da divisão do país entre católicos e protestantes.

O conflito, enraizado no início do século passado, intensificado no fim dos anos 60 e início dos 70, e abrandado após um acordo em 1998 ainda hoje deixa cicatrizes impossíveis de ser preenchidas nas vitimas de sempre: A população civil. Seja de qual região que for, é ela a maior vitima do radicalismo, da morte presente e da incompreensão de correntes de pensamento divergentes, que a cada ano toma ruas de cidades como Belfast, a capital, e Derry, propagando ideias nem sempre toleradas, e muitas vezes conflitadas a força.

As diferenças vão muito além da fé, muito além também das palavras do Papa, odiadas até hoje por grande parte dos radicais protestantes. A questão maior dos conflitos tem a mão do governo britânico, que por muito tempo esteve passivo aos problemas do país, e que aos poucos tem encontrado soluções para reunir as duas religiões sobre o mesmo teto e pensar no futuro de forma conjunta.

Um dia de conflitos entre manifestantes e policiais no Ulster (FCnotícias)
Um dia de conflitos entre manifestantes e policiais no Ulster (FCnotícias)

Divergências marcadas com sangue

Separada da República da Irlanda em 1922, o Ulster (como também é conhecida a Irlanda do Norte) era predominantemente protestante e fiel as ordens da coroa britânica, preferindo integrar a união, juntamente com a Escócia e o País de Gales. O Éire (Irlanda livre) seguiu adiante com os percalços de todo país recém-independente, pobre e rural, e que hoje se constitui numa das mais fortes economias da Europa, além de 10º mais bem colocado no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em todo o mundo. Uma realidade bem diferente do que se veria nos vizinhos do norte no correr dos anos.

Até o fim dos anos 60, eram visíveis os atos de segregação e preconceito entre protestantes e católicos nos limites do Ulster. Católicos eram exclusos de melhores oportunidades de emprego, além de serem colocados em uma situação de quase marginalidade, em bairros insalubres e com péssimas condições de vida. Em meados de 1968, grupos de católicos começam a organizar as primeiras manifestações pacifistas reivindicando direitos civis e maior representatividade e oportunidades no país. Passeatas que, de maneira que evoluíam, entravam em choque violento contra grupos de protestantes radicais. E tudo com a total conivência da Polícia Real do Ulster, a RUC.

Milhões de católicos vão as ruas em 1972. Era um domingo, tragicamente marcado a sangue. (Viking Vag)
Milhões de católicos vão as ruas em 1972. Era um domingo, tragicamente marcado a sangue. (Viking Vag)

A situação, que já era caótica, se tornou incontrolável com o passar dos anos. Conflitos e batalhas campais se intensificavam nos arredores das principais cidades do país, como Derry e a capital, Belfast. Em todos os lugares era visível o clima de tensão, e apesar da presença do exercito britânico, que desde 1969 protegia os bairros católicos como o Bogside, em Derry (Londonderry), as tensões pioravam, sobretudo nas tradicionais e provocativas paradas dos orangistas e unionistas radicais nos feriados do país.

Eis que chega 1972, uma manhã de domingo na cidade de Derry, e com ele, outra manifestação católica que ia as ruas amparada pelo então mais do que nunca ativo Exercito Republicano Irlandês, o IRA. O objetivo da passeata seria a prefeitura da cidade e o grupo partia do Bogside. No entanto, o grupo de mais de três mil pessoas foi contido violentamente pelo exercito britânico. Foi uma ação totalmente desastrosa que ceifou no local a vida de 13 jovens e deixou outros 26 feridos gravemente. Dentre os conflitos entre os dois lados, foi o maior e mais marcante dentro da Irlanda do Norte, que somadas todas as “batalhas campais” registradas, registram mais de 4 mil mortos.

Depois do Domingo Sangrento, o aumento dos confrontos chegou a ser considerado uma espécie de "guerra civil" (Abril)
Depois do Domingo Sangrento, o aumento dos confrontos chegou a ser considerado uma espécie de “guerra civil” (Abril)

A reação ao “Domingo Sangrento” foi imediata. A embaixada britânica em Dublin, na Irlanda, foi incendiada por manifestantes. Na Câmara dos Comuns, o pronunciamento do então Ministro do Interior, Reginald Maudling, foi bruscamente interrompido no acesso de revolta da deputada católica irlandesa Bernardette Devlin, que desferiu socos e arranhões contra o político inglês. Nos anos anteriores a separação das duas religiões se tornara cada vez mais intensa por conta do radicalismo e intransigência de ambos os lados. Somam-se também as atividades cada vez mais constantes das forças paramilitares de ambos os lados – O IRA e os principais movimentos extremistas protestantes – que vingavam os mortos com um número cada vez maior de atentados, tanto no Ulster quanto na própria Inglaterra.

Estava armada a fórmula para o desastre contínuo, que parecia resvalar para a inevitável guerra civil. Para piorar, nenhum governo britânico parecia querer efetivamente tomar a rédea da situação. Anos se passavam, e uma espécie de solução concreta para as divergências de ambos os lados saiu apenas em 1998, quando os governos britânico e irlandês assinaram o Acordo de Belfast, que previa nos principais pontos negociados temas como o desmantelamento de facções paramilitares, eleições livres, autonomia para a Irlanda do Norte e igualdade de direitos. Parecia o fim das tensões, apenas parecia…

IRA entre as ruelas de Belfast. Atuação do grupo foi encerrada em 2005. (Desconhecido)
Militantes do IRA entre as ruelas de Belfast. Atuação do grupo foi encerrada em 2005. (Desconhecido)

Um Ulster dividido… para sempre?

Passados 16 anos após a assinatura do Acordo de Belfast, e nove desde o encerramento das atividades do IRA (2005), a Irlanda do Norte vive em uma relativa paz e tranquilidade. No entanto, este sossego, as vezes quebrado pela revolta branda dos católicos contra as paradas orangistas de hoje em dia, foi conseguido da pior, porém, mais eficaz maneira: A divisão física dos bairros católicos e protestantes nas cidades do país, sobretudo em Belfast, a capital. Grandes muralhas separam na cidade bairros das duas religiões. Portões controlam a entrada de pessoas para os dois lados na parte da noite. Não há linhas de ônibus que liguem bairros católicos a protestantes e apenas o centro da capital norte-irlandesa é considerada uma “zona mista”.

Os murais nos bairros de Derry e Belfast. Opiniões expressam a divergência entre católicos e protestantes. (Estadão)
Os murais nos bairros de Derry e Belfast.
Opiniões expressam a divergência entre
católicos e protestantes. (Estadão)

Pelas esquinas de ambas as comunidades, as respostas são evasivas e curtas. Moradores católicos e protestantes consideram os muros um simples “fator de segurança” e evitam prolongar o assunto. Trafegar pelas ruas de Belfast e de outras cidades do Ulster é como voltar ao tempo do muro de Berlim. Com a diferença em que os dois lados, ao contrario da “saudade” alemã, ainda tem um longo caminho para entender o significado da palavra “tolerância”. Os murais nas paredes de casas e nos muros viraram uma espécie de “marca registrada” de Belfast, no entanto, as mensagens de cunho político de ambos os lados não nega, ainda há um longo caminho para a paz e o respeito.

Vale lembrar que o conflito entre protestantes e católicos na Irlanda do Norte é muito além, ou totalmente distante da fé. Durante os anos, ambas as religiões tem trocado em praticamente todas as nações do mundo experiências e conversas pacíficas e amigáveis, compartilhando da vida em sociedade independente da fé que professam. Mesmo tão distante de Belfast, Blumenau se cita como um exemplo claro. Há muitos anos, tanto a diocese quanto o sínodo partilham de opiniões iguais e, em várias ocasiões, reúnem-se para a realização de cultos ecumênicos, promovendo a ótima relação entre as duas religiões.

A questão é que a Irlanda do Norte vive ainda presa, em muitos dos habitantes, ao velho fanatismo ao Reino Unido, cujos radicais unionistas até hoje mantém a velha intransigência característica dos anos negros dos conflitos. A própria Inglaterra, conhecedora do problema crônico da intolerância de católicos e protestantes no Ulster, simplesmente teve um comportamento passivo e negligente diante da situação da nação-satélite, permitindo, sem uma resolução efetiva e sem a concordância de ambos os lados, o prolongamento das tensões e a intolerância crônica. O Acordo de Belfast ainda mantém uma certa paz, mas ela poderá durar tanto tempo como se imagina? Só o futuro e os norte-irlandeses podem responder.

Muros de Belfast, a capital, que separam católicos e protestantes. Previsão de retirada das barreiras feita para 2023. (Gospel Atualidades)
Muros de Belfast, a capital, que separam católicos e protestantes. Previsão de retirada das barreiras feita para 2023. (Gospel Atualidades)

A promessa feita pelo primeiro-ministro britânico David Cameron para 2023 vale a pena ser aguardada para ver. Segundo ele, os grandes muros que separam bairros católicos e protestantes devem ser removidas como parte de um processo de paz que inclui assim também a população em geral. Com muros ou não, a Irlanda do Norte segue assim procurando o meio-termo da convivência entre os cidadãos que a habitam. Se a paz é assim um sonho possível, como corriqueiramente se diz, por que ela ainda não dá certo efetivamente no Ulster?

A resposta, daqui a nove anos, se Deus, seja ele católico ou protestante, quiser.

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