sábado, 20 de abril de 2024
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Blumenau

Ela

Eu encontrei minha cachorra em uma feira de animais perto da nossa casa. Naquela época, com nove anos, eu queria um cão de qualquer maneira, queria tanto que chorava na porta do quarto dos meus pais; queria tanto que escrevia em redações da escola: “Eu quero um cachorro.” Fazia desenhos de cachorros, alugava filmes de cachorros e inventava nomes para o meu cachorro imaginário, até que meus pais finalmente aceitaram a derrota. No dia do meu aniversário, eles decidiram me levar para a feira, que acontecia no subsolo de um shopping (há muitos anos fechado), e que, com tantos filhotes latindo e lambendo, parecia meu paraíso terreno. Graças ao filme A Dama e o Vagabundo, eu tinha uma óbvia predileção por cockers. Quando vi minha cachorra pela primeira vez, ela era só uma bolinha de cor caramelo, peluda e orelhuda, adormecida enquanto seus irmãos mais barulhentos andavam pelo cercadinho. Não foi por sua placidez que ela acabou escolhida; tratou-se de mera coincidência, porque eu queria uma fêmea, e ela era a única fêmea que restara da ninhada.

Pelas primeiras semanas em casa, eu tentava tratá-la como um bebê. Havia separado uma toalhinha rosa especialmente para ela, na qual embrulhava-a sempre que mudava de cômodo, carregando-a por aí com a cabecinha encostada no meu ombro.

Ela dormia demais. Eu queria um filhote que brincasse comigo, mas minha cachorra tinha suas prioridades e, quando despertava, era somente para me olhar, constatar que eu ainda existia e voltar a dormir. Ela não tinha rabo, só um cotoco, que balançava furiosamente diante de suas grandes paixões na vida: comer e passear.

Apesar de nunca ter sido propriamente adestrada, ela era um dos cachorros mais comportados e dóceis do mundo. Nunca latiu para uma visita, nunca tentou morder ninguém. Quando eu lhe oferecia petiscos, ela colocava meus dedos na boca e os devolvia intactos. Nunca roeu sapatos e nem destruiu almofadas. Dar a patinha, o único truque que aprendeu, era como se apresentava a todas as pessoas, postando-se na sua frente e esperando até que você aceitasse o cumprimento.

Quando você apontava coisas, ela buscava, sem precisar de um comando de voz. Obviamente, certos itens mostravam-se mais gratificantes em comparação a outros: buscar biscoitos era uma tarefa mais prontamente executada do que buscar um par de chinelos (que nunca chegavam em pares, mas um por um, todos babados).

Uma criatura movida pelo olfato, provava-se impossível esconder comida dela. Quando filhote, subia nas cadeiras para pegar o que queria, o que me deixava levemente paranóica com a possibilidade de esquecer algo desembrulhado em cima de mesas ou bancadas. Depois, mais velha, o quadril mais fraco e as perninhas traseiras já não funcionando bem, gostava de tentar derrubar o lixo para ver o que encontraria nele. Muitas vezes, pega no flagra, fugia de nós com a tampa da lixeira na cabeça e, no momento em que era alcançada, oferecia a patinha como acordo de paz.

Alexandra Horowitz, em seu livro “Inside of a Dog,” diz que cães são observadores exemplares do comportamento humano, capazes de identificar mesmo as pequenas oscilações no nosso humor. Minha cachorra certamente conseguia me ler; quando eu estava chateada, ela vinha até mim, como quem não quisesse nada, e encostava seu focinho molhado na minha mão, sua forma de dar conforto; quando eu estava alegre, fazia festa, aquele pobre cotoco querendo se mexer como uma cauda inteira; quando me percebia brava, ela vagarosamente movia-se pelas imediações, cabeça baixa e os olhos mais tristes do mundo, esperando até que eu estivesse pronta para perdoar ou brincar.

Ela odiava o calor de Blumenau. Nos verões, era enviada para o pet shop, voltando tosada e parecendo um frango depenado, com cada orelha enfeitada com um lacinho (logo arrancados pelas patas de uma cadelinha que jamais fora vaidosa). Uma vez, cortar os pelos não se provou suficiente, e ela atirou-se na piscina a fim de se refrescar, obrigando minha mãe a pular atrás, roupa e tudo, para resgatá-la. Mesmo assim, com o clima demoníaco, seu longo caso com água era mais de ódio do que de amor; ela fugia dos banhos que eu queria dar como se eu levasse a própria morte; ser atingida pelo jato fraco da mangueira era igual a levar uma facada. Quando eu enfim conseguia colocá-la na bacia, ela me lançava olhares de puro sofrimento, querendo saber quando seu martírio acabaria.

Ela era valente, talvez de um jeito suicida. Enfrentava cães grandes, uma vez fazendo um vira-lata que tentou ser agressivo conosco correr ganindo pelo parque depois de receber uma mordida ninja de tão rápida no focinho. Cachorros maiores subestimavam-na pelo seu tamanho, mas aquele corpo gorducho escondia o coração de uma berserker, pronta para defender quem ameaçasse sua família. Entre os hobbies que não envolviam brigar com semelhantes, estava se coçar, o que ela amava fazer, e com o emprego de vários instrumentos diferentes: mãos humanas, quinas de móveis, colchas de cama e nossas cortinas brancas, surgindo de trás das últimas tal qual uma noiva. Às pessoas da casa, ela oferecia a barriga para ser acariciada, decerto imaginando que seria uma honra a qualquer um fazê-lo. Seu dia perfeito decorreria assim: ser coçada, comer à vontade e sair para passear. A mera visão da coleira lançava-a em um frenesi; se tivesse mãos, vestiria-se com ela por si mesma, ficando a me esperar no portão para nossa aventura diária.

Para o padrão da raça, ela viveu uma vida longa. Câncer acometeu-a na vida adulta, mas ela sobreviveu por anos após o diagnóstico, falecendo apenas quando já parecia ter aproveitado tudo aquilo que a existência canina ofertava. Nós choramos como crianças no dia em que ela foi dormir. Pedi para que enterrassem-na com seus brinquedos favoritos, e fiquei com mechinhas de seu pelo guardadas na minha gaveta.

Anos depois dela ter partido, ainda sonho que a vejo. Neles, nos sonhos, nada parece ter mudado; minha cachorra ainda quer as mesmas coisas, que são geralmente comida e carinho. Ela quer brincar e quer passear. Quando nos despedimos, fico com a sensação de que vou acordar e ela vai estar do lado da cama, aguardando pacientemente. Não é desagradável. As lembranças me alegram.

Mas não deixa de ser verdade o que dizem: que injustiça que nossos animais morram tão cedo, e que sobre a nós sentir toda essa falta.

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