sexta-feira, 29 de março de 2024
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Globo em queda e a ascensão da TV Cultura

(divulgação)
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Uma é o bicho-papão temido por muitos pela sua influência nas esferas sociais e políticas do país em seus quase 50 anos de trajetória mandando e desmandando na TV aberta brasileira.

A outra é sempre vista como “nanica” pelas emissoras ao seu redor, mas dona de uma programação que arranca elogios até mesmo dos mais conservadores adeptos das grandes e massivas redes de TV do país.

Parece estranho, mas ambas vivem situações antagônicas, ou em outros termos, entre o céu e o inferno. Depois de anos de liderança praticamente absoluta (não totalmente, pois no passado já foi superada em dados momentos), a toda-poderosa Rede Globo vê o seu império ruindo lenta e constantemente aos seus pés. A queda nos índices de audiência não é de hoje, já se arrasta desde meados de 2005 e 2006, em uma das tantas mudanças anuais de programação da popularmente conhecida “Vênus platinada”.

Os últimos anos tem resultado em uma queda de aproximadamente 10% nos orgulhosamente altos índices de audiência da emissora. Algo inédito que faz arrancar palmas de seus inimigos e concorrentes, mas que ainda, seja por cinismo ou despreocupação, não preocupa a cabeça fechada da família Marinho.

Na outra ponta da corda está a TV Cultura. Para muitos, uma mera emissora de documentários e programação muito diferentes daquele “blockbuster” tradicional empurrado pela Globo e suas concorrentes, como Record, SBT e Band. No entanto, apesar de ainda ser uma opção quase que sempre de intelectuais e outros entusiastas da televisão saudável, a emissora paulista foi condecorada com um prêmio quase que inesperado no inicio deste ano.

Segunda posição, a qualidade da Cultura surpreende até os mais céticos na TV Brasileira (BBC/Populus)
Segunda posição, a qualidade da Cultura surpreende até os mais céticos na TV Brasileira (BBC/Populus)

Uma pesquisa organizada entre 30 de setembro e 18 de outubro de 2013 pelo instituto britânico Populus e encomendada pela inglesa BBC apontou que a emissora da Fundação Padre Anchieta tem a segunda melhor programação do mundo em matéria de qualidade, perdendo apenas para a BBC One, pertencente a mesma encomendante da avaliação.

Em se tratando de Brasil, onde a qualidade dos programas da TV aberta sempre é colocada no banco dos réus devido a sua procedência alienante e fútil, a Cultura mostrou que nanicos são apenas os números de audiência perante as grandes corporações e tem acertado na fórmula de qualidade que é prezada por muitos sonhadores da televisão perfeita no país do jeitinho. Apesar de uma opção quase sempre ignorada pela grande maioria dos brasileiros, a emissora não se deixa levar na onda dos “por cento” de IBOPE, e faz seu papel de tornar público o conhecimento e a informação isenta, apesar de algumas controvérsias isoladas. Propósito este que norteia a emissora desde sua fundação, em 1967.

No passado, trabalhos em parceria, como a Vila Sésamo, de 1972 a 1977 (Artistas em Desfile)
No passado de ambas, trabalhos em parceria
como a Vila Sésamo, de 1972 a
1977 (Artistas em Desfile)

No cair da poderosa, a berlinda da modesta

Globo e Cultura são simplesmente duas emissoras de dois modelos totalmente incomparáveis em qualquer parâmetro. Enquanto para uma a tal “realidade brasileira”, somadas a posições de opinião duvidosas e dramalhões não mais encantantes são ainda o meio de conseguir pontos no IBOPE, a outra preza pela programação sadia, trazendo a luz a música clássica, arte, conhecimento, educação infantil, entrevistas inteligentes e um dos mais ricos acervos da história da TV brasileira, com arquivos até da extinta Rede Tupi. Algo que não traz pontos a uma grande massa, mas atrai os olhos dos que selecionam a programação diária pela qualidade e não pela promiscuidade.

Curiosamente, ambas já trabalharam juntas em um passado um tanto distante, quando de certa maneira a Globo era ainda a opção unânime nas casas brasileiras. Como até o início dos anos 1990 a Cultura apenas transmitia no estado de São Paulo e em algumas poucas unidades da federação, a parceria com a Globo em programas educativos era uma saída para promover o bom ideal da educação via TV.

Um dos projetos de maior destaque de ambas foi entre 1972 e 1977, quando foi ao ar a lendária “Vila Sésamo”, produto da “Sesame Workshop” americana que desembarcava em uma versão totalmente produzida no Brasil pelas duas emissoras, e que levou durante anos uma legião de crianças, hoje adultas, a uma viagem entre números, histórias e canções.

Passou-se o tempo, e ambas seguiram caminhos distintos. Por muito tempo, o que era mais recente na TV brasileira passava pelas antenas da Globo. Depois da falência da Tupi, em 1980, a emissora da família Marinho reinou absoluta, apenas passando alguns duelos de audiência ferrenhos contra SBT e Manchete em alguns momentos, mas sempre mantendo sua posição de inabalável e de “bem-feitora para a sociedade brasileira”.

No entanto, nada livrava a emissora dos seus rótulos de monopolizadora, manipuladora e tendenciosa aos governos vigentes desde os tempos do Regime Militar brasileiro. Fala-se que seu crescimento se deve em muito a influência de Roberto Marinho na política, o que não é nenhuma mentira. Sua programação, por ser uma emissora comercial, reunia a massa em torno de uma televisão para “se ver”, como ela mesma propunha. Mas o tempo passou, e de vitrine duvidosa a Globo passava a uma espécie de ponto de encontro do que é mais desprezível na TV nacional em vários sentidos. Uma programação que segue tendenciosa, com novelas que já não emplacam mais grandes picos de audiência como outrora, um jornalismo que ainda encanta pela montagem das matérias mas que é botado em xeque em sua idoneidade, e programas popularescos que nada trazem de útil e edificante.

Roberto Marinho e as "relações de poder". Com os ex-presidentes Costa e Silva e Figueiredo, e o ex-governador baiano Antônio Carlos Magalhães (esq-dir/Blog do Garotinho)
Roberto Marinho e as “relações de poder”. Com os ex-presidentes Costa e Silva e Figueiredo, e o ex-governador
baiano Antônio Carlos Magalhães (esq-dir/Blog do Garotinho)

Já a Cultura tinha nas veias a promoção das atividades culturais, de conhecimento e de educação infantil em suas ondas. Fundada oficialmente em 1967, a emissora antes de propriedade dos Diários Associados (os mesmos proprietários da Rede Tupi) passava a mão da Fundação Padre Anchieta, que a mantém desde 1969 e que a conseguiu com a doação de meros R$ 0,70 de cada paulistano para o pagamento de sua transferência.

A Fundação Padre Anchieta era composta á época por profissionais, faculdades do estado paulista, sociedades públicas e privadas. Ainda hoje, é uma entidade governamental sem compromissos comerciais, e que se mantém tanto com os espaços publicitários quanto com a venda de seus programas e documentários para outras emissoras e parcerias.

Castelo Ra-Tim-Bum, um épico da TV Cultura premiado em Nova York, em 1994 (Estadão)
Castelo Ra-Tim-Bum, um épico da TV Cultura premiado em Nova York, em 1994 (Estadão)

Tendo a programação cultural em sua veia, a Cultura foi se especializando em ser uma emissora voltada para este fim. E não foram poucos os programas imortalizados em sua tela. Infantis como “Bambalão”, “Castelo Ra-Tim-Bum”, “Cocoricó”, “X-Tudo” e tantos outros entraram para o imaginário das crianças dos anos 1980 e 1990, sendo alguns deles premiados em vários países.

Foi na Cultura que o Brasil começou a ver a Copa do Mundo e o futebol de uma outra forma, foi a Cultura que implantou no esporte a tecnologia do “slow-motion”, ou a famosa “câmera lenta”. O quadro de jornalismo da emissora também é de grande respeito, e tem no tradicional programa “Roda Viva” um dos principais recôncavos de intelectualidade e fatos da TV brasileira, com o respaldo de diversos jornalistas brasileiros.

Fantastico: Mudanças e mudanças, mas nada de um arranque efetivo na audiência (Ismael Carvalho)
Fantastico: Mudanças e mudanças, mas nada de
um arranque efetivo na audiência (Ismael Carvalho)

O panorama atual e o abismo de diferenças

Chegando a 2014, as diferenças entre Globo e Cultura se tornam ainda mais gritantes, enquanto a emissora paulista não procura ousar, mas acerta parafusos e continua em seu propósito, a Vênus platinada continua tentando acertar o ponto certo para voltar a reinar, e para tristeza dos seus apoiadores, não tem conseguido com tanto êxito que se esperava.

O advento da internet e da TV por assinatura parecem ter feito da Globo uma mera “emissora qualquer” na aldeia das opções. Ate mesmo as emissoras segmentadas das Organizações Globo, como a Globo News, tem conseguido produzir programas de melhor qualidade para um público que ainda é exigente, e mesmo assim confia desconfiando no que vê.

Nem todos os seriados estrangeiros transmitidos pela Globo são “exclusivos” como antigamente. Nem toda a informação mostrada é em primeira mão e completa como outrora. Ainda tentando acompanhar a entrada da internet na vida do brasileiro, a emissora tropeça em velhos problemas que atravancam sua audiência, como as sucessivas remodelações do já malfadado “Fantástico”, que há muito tempo não mostra mais o vigor de tempos passados e apela pela estratégia de segurar a reportagem maior da atração para o fim do programa, como forma de segurar pontos. Problema maior está no outrora glorioso núcleo de teledramaturgia, que nos três horários não tem mais o mesmo fôlego, ou mesmo nem emplaca mais uma novela. A trama “Em Família” já teve brutalmente alterado seu roteiro original numa tentativa de reverter o quadro, sem resultados.

SBT e Record já se aproximam perigosamente de seus pontos na tabela do IBOPE, e não há, pelo visto, Big Brother nem novela que salve este declínio. Talvez o último lampejo de esperança em frear a queda será a Copa, onde a emissora visivelmente tem apostado todas as fichas que tem na mesa da roleta na procura pela estabilidade de outrora.

Rolando Boldrin em seu "Sr. Brasil". Manutenção de seus propósitos e ideias mantém a qualidade da Cultura (Jovem Pan)
Rolando Boldrin em seu “Sr. Brasil”. Manutenção
de seus propósitos e ideias preserva a qualidade
da Cultura (Jovem Pan)

Enquanto isso, a Cultura segue sua fórmula mágica de educação, arte e racionalidade. Traz a tela profissionais egressos até mesmo da Globo e de outras emissoras e que procuram uma outra forma de mostrar seus dotes em frente as câmeras sem os velhos apelos e modismos das emissoras comerciais. A conquista da medalha de prata entre as melhores programações do mundo pode não significar pontos no IBOPE, mas traz a emissora paulista a certeza de que o caminho certo ainda está sendo bem trilhado, e que sendo uma opção ou não, é na sua freqüência que a TV brasileira ainda encontra um pouco de razão e sanidade mental.

São estradas diferentes, caminhos opostos e que, pela história recente, levam uma a uma ruína eminente e outra a bonança do bom exercício da TV dentro das terras tupiniquins. O que o futuro reserva a cada uma delas ainda não é bem elucidado, mas a Cultura continua a convidar seu telespectador a abraçar o novo. Já a Globo procura alguma coisa nas velhas coisas que sempre tentou, e que não mais “se vê por aqui”.

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